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  • Writer's pictureTiago Franco

Escravos do Século XXI

Updated: May 25, 2019

Frequentemente, afirmo que esta viagem me está a tornar mais atento a quem me rodeia e atribuir uma sensibilidade que não tinha em certas matérias. Muitas vezes fico inquieto e sem grande possibilidade de ação. Assim sendo, resta-me partilhar o que vivo com a família e amigos, sensibilizando-os para o Mundo que está lá fora, que sabemos que existe, mas que evitamos refletir sobre. Aqui vão dois exemplos:


No dia 24 de Abril de 2013, uma fábrica da indústria da moda desmoronou no Bangladesh deixando milhares de vidas para trás. Queria ter escrito algo sobre isto quando estive por lá mas foram dias demasiado intensos para que tivesse discernimento necessário para o fazer. Visitei duas fábricas, falei com empregados e empregadores, com os responsáveis de exportação e com os de recursos humanos. Por sorte (ou azar), visitei as fábricas no dia do pagamento mensal de salários – vi o ficheiro de Excel e não passavam dos cinquenta ou setenta euros por mês por dez horas diárias, seis dias por semana. Não vi ninguém a ser maltratado. Vi, sim, pessoas orgulhosas do seu trabalho e, talvez, com poucos sonhos num país que se fecha na rotina casa-fábrica, onde os turistas não vêm e onde o Governo não tem como prioridade a proteção da classe fabril, mesmo que essa represente a grande maioria da população. Visitei também o local da Rana Plaza, a fábrica que desmoronou. Foi um vazio. Todos os destroços foram recolhidos e uma pequena estátua ergue-se com a mensagem “nunca nos esqueceremos”. Seis anos se passaram. A realidade permanece quase intacta.


E no Nepal fiquei, novamente, com uma inquietação longe de ser passageira. Estive nos Himalaias num trilho que revelou em mim características que não sabia que tinha. Foi um caminho duro, que ia fazendo ao meu ritmo. E, em cada trilho, ia encontrando os ditos “sherpas”, os homens que na montanha fazem os quilómetros em tempo record com quarenta ou até mais quilos às costas. E o que levam? Na grande maioria, as mochilas dos turistas. Em grupos grandes, talvez três sherpas levam todos os casacos contra o frio, neve e vento, os sacos cama prontos para temperaturas dignas do polo norte, e todos os equipamentos especializados para aqueles dias em específico de quinze ou vinte turistas. Muitos deles jovens abaixo dos trinta.


Claro: todos se vestem como querem, com as roupas que lhes fazem sentir felizes e confiantes. E todos os que se aventuram pela montanha têm o direito de investir em tudo o que acham necessário se o objetivo é tornar a experiência mais gratificante e inesquecível. Cada um veste e viaja como quer e não há uma maneira certa de o fazer. Mas isto deixa-me a pensar…

Vivemos (a meu ver) numa era em que continuamos a não nos proteger mutuamente enquanto irmandade humana. Não aprendemos com o passado, em que navios de escravos por esses oceanos fora forneciam mão-de-obra para que países colonizadores ficassem mais ricos? De repente, no meu Mundo, a expressão países de primeira e países de segunda ganhou uma expressão cada vez mais profunda com consequências devastadoras. Há, ou não, humanos que são dignos de mais conforto, respeito e direitos que outros? São, ou não, os sonhos dos europeus e americanos mais importantes e válidos do que os dos asiáticos ou africanos?


Comprar a camisola na Primark a três euros contribui para que pessoas no Bangladesh vivam todos os dias na corda bamba. Deixar que alguém suba aos 4500 metros com quarenta quilos às costas de equipamentos que são meus contribui para que pessoas no Nepal vivam os seus trinta anos com dores na coluna e nos joelhos que pessoas de setenta anos têm. Há quem chame a isto o “esclavagismo do século XXI”. Eu chamo a isto a era da desinformação e da desresponsabilização. No fundo, todos (incluindo eu), sabemos o que se passa no Mundo lá fora, mas o conforto de viver uma vida facilitada onde tudo é um mar de rosas criou uma venda tão grande e tão escura, que os nossos olhos dificilmente vêem para lá das nossas fronteiras. Mas a informação existe, e o sentido de responsabilidade é algo individual. Somos, ou não, todos iguais? Queremos, ou não, lutar por uma sociedade em que todos tenham a possibilidade de ser felizes e realizados? Isto deixa-me a pensar.


Nunca nos esqueceremos, diziam no Bangladesh. Eu não irei.

Até breve, franco


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