top of page
  • Writer's pictureTiago Franco

Deixei de seguir bloggers (2o Capítulo)

Nas redes sociais partilham-se imensas teorias de mochileiros sobre como se deve viver uma viagem, como se é um viajante e não um turista, como se conhece uma cultura. Espalham-se fotos filtradas de irrealismos, cores vívidas e momentos construídos ao detalhe. Vive-se bem, transmite-se felicidade genuína, partilham-se momentos com “os nativos”. E, no fundo, quem sou eu para julgar tudo isto – se forem felizes e se a viagem for sinónimo de abertura ao mundo, então está tudo certo. Mas deixo aqui os meus dois “contudo” que andam a fervilhar há muito.


DOIS, tudo o que o turista faz tem um impacto BRUTAL na vida das pessoas que vivem nestes sítios. Isto, para mim, é o desafio constante para quem viaja com consciência e de forma responsável. Este é um tópico sensível e que não reúne uma opinião consensual, mas, ainda assim, partilho as minhas reflexões sobre o tema. Já revisitei cada frase deste novo “capítulo” e, finalmente, acho que fielmente expressa o que penso. Aqui vai…


Quem faz uma viagem de longa duração, por norma, escolhe países com custo de vida baixo. Escolhe as Tailândias e as Bolívias desta vida. Escolhe os voluntariados nas escolas de inglês, nos orfanatos para crianças ou nos santuários para animais. Por norma, claro. Estou a generalizar. E, antes de avançar, que fique claro: 1. Para quem viaja, aqui fica uma autêntica admiração por deixarem tudo para trás e partirem em aventura pelo Mundo; 2. Para quem faz voluntariado, deixo a minha sincera vénia e agradecimento por darem a este mundo o vosso tempo e conhecimento; 3, Para quem vai para os destinos mais trendy reforço que se estes são os destinos mais procurados é porque, na verdade, merecem uma visita. Até agora, tudo certo. De verdade.


Contudo, e aqui inicio o tema que me tira o sono, até que ponto não estaremos nós, os turistas, a criar VÍCIOS?


1- No monumento branco no Myanmar, em Mingun, várias crianças andam aleatoriamente à volta do templo. Este é o icónico símbolo do Myanmar nas redes sociais, onde as fotos surgem verdadeiramente bonitas, com filtros ou não – é irrelevante. Alguém tem de tirar as fotos e nem todos andam com um tripé atrás. Aí surge um miúdo que te tira a foto, que te acrescenta um filtro e que no fim e pergunta – “gostas da edição? Faz mais poses!”. Caí na armadilha – vi um miúdo, meti-me com ele e acabei com o miúdo a tirar-me umas quantas fotografias. No fim… percebi que tinha posto a pata na poça e ele deu a entender queria gorjeta. Não dei. Fui comprar um côco e sentei-me perto do templo a olhar para isto. O procedimento era utilizado por vários miúdos naquela área, e, quando acabavam, vinham gabar-se aos pares do dinheiro que tinham feito. Depois, davam o dinheiro aos pais. Pergunto-me: os pais destes miúdos preferem fazer deles os melhores alunos na escola ou os melhores ingénuos a fazer dinheiro com turistas? Porque tudo começou com um turista inocente que deu os primeiros trocos a um miúdo pelas fotos bonitas que tirou e, hoje, isto é um negócio.


2- Estava na Índia, em Jaisalmer. Passeava com dois indianos que me levaram aos mercados que não estão feitos para turista ver. Comemos “dal pakuwan” numa carrinha estacionada na esquina. Lembro-me deste episódio como se fosse ontem. O dito custava quase dez vezes mais no restaurante para turistas e ali… nem chegava a 20 cêntimos. Uma bagatela! Quando fui a pagar não tinha o dinheiro trocado e dei uma gorjeta que nem chegou a 5 cêntimos, mas estava tão bom que nem me importei. Logo ali, a minha amiga indiana abriu-me os olhos e, sem tirar nem pôr, deu-me um raspanete – era um gesto inocente e de agradecimento, mas perigoso. Segundo ela, se eu quiser demonstrar que gostei da refeição elogio no fim com grande enfâse e volto mais tarde para repetir. Essa é a forma certa. A partir do momento em que dei a gorjeta, este senhor começou a esperar que os turistas iriam sempre dar a gorjeta e iria começar a dar prioridade em servir turistas em vez dos locais. Afinal… é mais rentável. Estava certa… voltei mais tarde, sozinho, fui rapidamente servido e não recebi troco porque ele assumiu que eu queria pagar o valor que anteriormente tinha sido dado. Os locais esperaram que ele me servisse.


3- O Nepal é, hoje, um paraíso de ONGs que ajudaram o país na reconstrução pós-sismo e na gestão de miúdos que ficaram órfãos de pai e de mãe. O momento foi crítico e toda a ajuda foi necessária. Para se fazer voluntariado por lá as opções são variadas e os projetos abrangem muitas áreas para agradar a grego e a troiano. O voluntariado começou a ser negócio e mais do que cooperar no desenvolvimento das comunidades, o voluntariado é, nos dias de hoje, uma grande fonte de rendimento para muitos. Para um europeu, pagar 15 ou 20 euros por dia para viver com locais e ajudar numa escola é aceitável, mas, para um nepalês, isso é muita nota e um mês com um voluntário é suficiente para sustentar uma família durante um ano. Mais: se eu for diretor de uma escola, entre pagar a um professor nepalês com formação em inglês para ensinar os miúdos ou ter jovens que em ciclos de 15 dias a 1 mês vão lá ensinar mais umas palavras e que ainda pagam para o fazer, qual vou escolher num momento de desespero como este pós-sismo? E, sendo eu o tal diretor, mesmo que aceite inicialmente esta opção por real necessidade e falta de mão-de-obra especializada, nos anos seguintes, quando tudo estiver mais estável, vou optar por apostar na formação de locais para que, um dia, eles se tornem os professores ou vou continuar a encher o pé de meia num país em que todo o dinheiro que venha é ouro? E que impacto vai isso ter na formação destes miúdos? Quem beneficia mais: o diretor da escola ou os miúdos? Houve ou não um progresso no desenvolvimento desta comunidade com o meu voluntariado?


4- Estava nos primeiros dias no Camboja quando uma senhora se aproxima a vender lápis e cadernos para os meninos da escola ali perto. “Toda a ajuda é preciosa para que estes meninos possam estudar”, dizia. Os lápis em causa nem eram caros, gastaria mais dinheiro a almoçar, provavelmente. Esta senhora “tocou na ferida”: quem é que não quer que os meninos do Camboja estudem? É um tópico sensível. Nesta situação, se um turista comprar os lápis até tem a oportunidade de os dar diretamente aos 5 ou 6 miúdos que rapidamente se apressam ali a chegar. Vamos assumir que os meninos vão mesmo utilizar os lápis para estudar e que, quando o turista foi embora, eles não foram recolhidos para serem revendidos. Vamos assumir, também, que aqueles lápis não vieram de um donativo de um país Europeu numa caixa que continha imenso material escolar para meninos do Camboja irem à escola, e que eles não estão a fazer dinheiro com os esses donativos. Ainda vamos assumir que “a bagatela” que se deu pelos lápis, que na verdade é imenso dinheiro no Camboja, vai ser diretamente aplicada nas crianças e não vai parar aos bolsos do diretor da escola. Assumimos isto tudo porque vamos acreditar que quem nos vendeu os lápis quer o melhor para estas crianças. Ainda assim… os lápis gastam-se rápido. E quando eles precisarem, outra vez, de lápis? Os pais vão à loja comprar ou os miúdos vão ficar uns dias à espera que um outro turista os ofereça?


Só me apercebi da real dimensão de tudo o que faço no estrangeiro quando lá cheguei. Meto a pata na poça todos os dias e isso deixa-me a pensar. E não é preciso ir além-fronteiras para perceber o impacto do turismo – hoje temos mais habitantes Airbnb em Alfama do que locais que fazem a marcha nos santos populares. Se eu tiver uma propriedade neste bairro vou preferir que um norueguês me pague o dobro do seu real valor ou dar prioridade a um jovem português cheio de garra para dar um novo fôlego ao bairro? É que, para o Norueguês, a renda continua a ser uma bagatela – mais centena de euros, menos centena. Para o proprietário, independentemente do impacto social da sua decisão, quanto mais rentável for o negócio, melhor.


O conceito de “bagatela” é muito amplo. Se calhar, foi preciso introduzir a bagatela do Norueguês em Lisboa para entender a importância da nossa bagatela no Myanmar. Aqui apresentei quatro exemplos – todos partiram de gestos inocentes, e, até percebermos que pusemos a pata na poça e avaliarmos o real impacto do que fizemos, tudo isto faz sentido nas nossas mentes.

Inicialmente escrevia que, para mim, “se [os turistas] forem felizes e se a viagem for sinónimo de abertura ao mundo, então está tudo certo”. Contudo, isto não é tão verdade assim. Quando tiro a foto com o elefante, quando partilho a foto dos coitadinhos meninos pobres, quando subo aos Himalaias com um sherpa a levar a mochila de cinco ou seis turistas, quando dou a gorjeta, quando faço o voluntariado com os miúdos e substituo o trabalho que é de um profissional, quando partilho que dei comida a miúdos na rua, quando compro o lápis ou o pacote de leite para ajudar ou quando arrendo um quarto em Lisboa a 500 euros num pais onde o salário mínimo ainda não chegou aos 650… de forma inocente estou a criar vícios e estou a ter um impacto que muitas vezes nem penso ter.


Cooperar para o desenvolvimento é dar ferramentas para que, um dia, essa comunidade não precise mais de voluntários nem donativos porque já consegue gerar de forma autossuficiente o seu próprio crescimento. É capacitar não é dar assistência. Na minha humilde ótica, se eu quero ajudar o miúdo, não dou a gorjeta pelas fotos nem não compro o lápis - vou ao café do lado e contribuo para o negócio dos pais. E mesmo aí, não dou gorjeta, se quiser mesmo ajudar o miúdo vou lá mais umas quantas vezes e trago amigos com o objetivo de tornar rentável quer seja o negócio do café, o do mini-mercado ou o da loja de lembranças da esquina. Essa é A fonte de rendimento dos pais e não os miúdos ou os donativos. E reforço: meto a pata na poça todos os dias e sei que isso me prepara para novas situações que possam surgir nos dias seguintes em viagem.


E o que é que isto tem que ver com os ditos bloggers? Tudo o que se partilha pode vir a inspirar alguém e pode, erroneamente, induzir em alguém uma realidade que pode não corresponder à verdade. Mais… as redes sociais estão desprovidas de contexto. Se partilho a imagem dos miúdos coitadinhos do Nepal com uma descrição que revela a injustiça deste mundo em que uns têm tanto e outros tão pouco ou se mostro digitalmente que dei uma bolacha a um miúdo na rua posso estar a criar o estigma de que, se não fosse pelos turistas, estes miúdos não tinham que comer. E ainda… quando se mostram tais fotos, qual é a intenção desta partilha? Aqui surgem duas perspetivas – 1. Há bloggers em quem “já confio” e com quem partilho muitos valores. “Se deu a bolacha foi num ato inocente ou porque se calhar já anda a brincar com ele há uma semana e deu a bolacha ao miúdo como quem dá a um amigo de viagem” penso, e isso não tem mal algum. Novamente, estou desprovido de contexto, mas sei que teve a melhor das intenções. 2. Há bloggers que não me transmitiam total confiança moral, apesar da aventura incrível que estavam a ter e das fotos bonitas que têm. Quando se tirou as fotos com os miúdos na rua e se adicionou um texto emotivo foi tudo isso autêntico? Ou o sorriso de uma criança rende mais gostos? E se deu o donativo, deu para ajudar ou para mostrar que se ajudou? Não sei, não tenho contexto no mundo digital e fica a dúvida. Mas tudo isso teve impacto tanto nos locais como nos seguidores que construíram imagens na sua cabeça que não correspondem à realidade. Para além de que usar crianças ou donativos para atingir mais público e conseguir mais reações é… não sei, cabe a cada um refletir sobre isso. Mesmo!


No Bangladesh, então, este desafio foi ainda maior na minha partilha. Na altura, a realidade foi dura mas eu vi miúdos bem felizes nas fábricas e famílias que transpiravam amor e carinho. Se queria que a realidade fosse diferente? Queria, claro. Se acho que as multinacionais estão a desacelerar o desenvolvimento neste país e que o Governo não está a defender o melhor interesse dos seus cidadãos? Acho. Se penso que a melhor forma de ajudar é consumir conscientemente nos sítios onde vivemos e capacitar este povo com conhecimentos orientados para as profissões do futuro? Penso. Partilhar todos estes sentimentos não foi fácil, e, se fosse hoje, teria esperado uns dias e não teria partilhado tudo a quente. Ainda eu não tinha digerido tudo aquilo e já partilhava com outros para que também eles digerissem. Se calhar, precisava de ajuda para digerir aquilo… não sei. Reforcei que eles davam o seu melhor nas fábricas e que eram inocentemente felizes, com salários ridiculamente baixos mesmo para o custo de vida no Bangladesh, mas pode não ter sido reforço suficiente. Aqui fica o meu pedido de desculpas e a garantia de que há meninos felizes por lá.


Para além de tudo isto, há mais variáveis em jogo – num pós-tsunami em que o país vive o caos e há pessoas a morrer à fome, as necessidades locais são umas, passados 5 ou 10 anos, as necessidades já são outras. Tem que se relativizar e adaptar a nossa postura à realidade que se vive. Há muita gente que já pensa sobre isto enquanto viaja e isso é ótimo. Podemos não partilhar das mesmas ideias, mas temos argumentos que refletem vivências. Estou aberto a ouvir novas perspetivas e a trocar impressões! Neste momento, é assim que penso e ajo segundo isto.


Viajar é um desafio. Inspirar é cativante. Consumir e Contribuir um poço de encruzilhadas. Admiro muito o trabalho que bloggers fazem e agradeço-lhes por me inspirarem todos os dias. Estes dois pontos que aqui deixei – 1. o inspirar para uma realidade que se pinta de cor-de-rosa, por vezes adulterada, cheia de bons momentos e, 2. a não correta avaliação do impacto que se tem enquanto turista e enquanto influenciador num mundo digital descontextualizado onde os likes são mais importantes que a ética – são assuntos com os quais me debruço muitas vezes e que me deixam horas a pensar. “Só eu tenho dias maus em que apetece terminar por ali?”, “Estou a ser forreta e insensível ou as minhas decisões podem mesmo ter um impacto negativo?”, “O que se pretendeu com esta partilha – chegar ao meu coração ou ao botão do like?”. Isto assombra-me.


Um obrigado se leste até ao fim com a melhor das intenções, se seguiste a aventura, se me abriste os olhos e se estiveste lá quando andei sem rumo. Claro… quem lê, quer ler, e neste alonguei-me porque há coisas que não podem ser ditas com meias-palavras.


Abraço, franco.

1,234 views0 comments

Recent Posts

See All
bottom of page