Dia 200. Aquela despedida hipócrita...
- Tiago Franco
- Jul 23, 2019
- 5 min read
Conheci o Zeeshan na Índia. Era a véspera da Holi, as fogueiras já se preparavam nas ruas, os pós com as cores mais vibrantes do mundo já se vendiam em cada esquina e os miúdos já andavam a atirar água uns aos outros. E eu estava em Delhi, no sítio errado. Delhi não tem grande tradição de festejar a Holi mas todos os bilhetes para Agra, cidade do Taj Mahal, estavam esgotados. A Índia parou naqueles dias e eu… fui forçado a parar também.
Estava a deambular pela cidade, à procura de algo para fazer, e cruzei-me com uma daquelas pequenas zonas verdes de bairro. Pensei: “é mesmo aqui que vou almoçar e fazer uma sesta”. Foi aí que conheci o Zeeshan – estudante, vindo de Kashmir, muçulmano. Enquadrando, esta é a zona que está, neste momento, em conflito armado entre a Índia e o Paquistão. Ficámos ali quase uma hora a conversar - ele ia me contando como é viver por lá e eu ia partilhando como é viver com uma mochila às costas. Mas estava tão cansado que lhe disse que estava de rastos e que precisava mesmo de uma sesta. Ele diz: “se quiseres podes vir a minha casa!”. E eu fui.
Engraçado que, enquanto escrevo isto, penso “sou mesmo doido”. Na verdade, depois de dois meses de Índia, essas barreiras mentais deixam de existir. Ser-se convidado para ir a casa de alguém na Europa é impensável e traz à tona todas aquelas notícias de assaltos e assédio sexual. Ali… confiava. Porque é que não posso convidar um estrageiro a ir a minha casa, oferecer-lhe o lanche ou o almoço e ficarmos ali a conversar umas horas? Será que, enquanto europeus, perdemos a capacidade de acolher pessoas desconhecidas como família, de lhes querer bem e ouvir o que elas nos têm para contar? Porque quando vamos ao estrangeiro e isso nos acontece é, provavelmente, um dos melhores dias de viagem. É bom pensarmos sobre isto.
Os muçulmanos em Delhi não têm a tradição de festejar a Holi. E, apesar de termos ficado ali a tarde toda a conversar com ele e com o colega de quarto também de Kashmir, a fazer a sesta e, até, com o Zeeshan a cortar-me o cabelo (bem precisava!), de vez em quando saltava a dúvida: e a Holi? As horas foram passando, já era noite, eu estava num daqueles bairros mais escondidos no centro de Delhi e acabei por ficar lá a dormir naquele dia. No dia seguinte tomámos a decisão: nenhum de nós está muito confortável em sair à rua e festejar a Holi mas vamos fazê-lo e vai ser um grande dia. E foi, literalmente, um grande dia! As pessoas andavam nas ruas e, amigavelmente, partilhavam as cores entre todos desejando, com genuinidade, “Happy Holi”. As crianças garantiam que todas as almas que passassem naquelas ruas ficavam encharcadas da cabeça aos pés e as famílias iam partilhando comida entre todos no bairro. Chegámos ao fim e não sabia como distinguir europeus de indianos, ricos de pobres, ou hindus de muçulmanos. Todos partilhavam das mesmas cores e todos desejavam o melhor a cada um que passava na rua. Foi um daqueles dias que não vou esquecer.
Dali a uma semana fui para uma “vegan farm” no Nepal. Já escrevi sobre como foi a vida por lá, mas recordo aqueles dias sempre com grande saudade. Ali não havia eletricidade, nem Internet, nem água quente, nem carros, e, no fundo, também não havia nada para fazer. Trabalhávamos 4 horas por dia na quinta, e, muitas vezes, tivemos “folgas”. Passei a maior parte do tempo com a Carmén do Canadá – conversámos sobre todos os temas que nos lembrámos, lavámos toda a roupa da mochila, pintámos, escrevemos, ouvimos a mesma música para poupar bateria, adormecíamos às 20h com o pôr-do-sol, acordávamos às 5h com o nascer-do-sol e cozinhávamos o que a terra nos dava. Entretanto ela foi embora e fiquei lá sozinho com os quatro jovens agricultores da quinta.
Aquela quinta situava-se em Patiswara, uma aldeia no meio do nada, perto do epicentro do sismo de 2015 que destrui o Nepal. Ali, todas as casas ficaram destruídas e semanas passaram-se até que alguém conseguisse chegar àquele ponto remoto para prestar assistência. Não foram meses fáceis. Falávamos muitas vezes sobre isso, mas aquele tema ainda era muito sensível e recente e, por isso, eles preferiam não dar muitos detalhes. Entretanto, os dias foram passando e chegou a minha altura de partir da quinta.
O Bikas é um jovem agricultor que já viveu na capital a trabalhar nos restaurantes para turistas – tem um dom para a cozinha, mas as responsabilidades familiares obrigaram-no a voltar a Patiswara e a cultivar, novamente, todas as propriedades da família. É um rapaz esforçado, com visão e, acima de tudo, autêntico! Esteve sempre preocupado connosco durante aqueles dias e sempre se esforçou para saber um pouco mais sobre nós. Um bom amigo.
Quando disse que ia embora, automaticamente, ele decidiu que, naquele dia, iria cozinhar um grande pitéu. Ajudei-o a fazer o almoço e, dali, partimos a pé para a aldeia ali ao lado (a 40 minutos de distância) com outro amigo dele. Eu transbordava alegria por ver que eles me queriam mostrar um bocado da sua infância e eles estavam tão felizes por eu lá estar que insistiam sempre para beber mais um copo. O álcool desencadeou conversas sobre o pós-sismo, sobre as suas famílias e sobre os sonhos que dificilmente alguma vez sairão cá para fora. Houve muita partilha naquele dia e o ir embora foi, a cada hora, ia ficando cada vez mais difícil.
Fica a dúvida: e depois de tudo isto como se diz adeus? Como turistas, queremos sempre conhecer ao máximo a realidade de quem vive por esse Mundo fora - queremos saber como cresceram, que sonhos têm e quais são as suas prioridades. Queremos chegar ali e, num par de dias, conquistar a sua confiança para que partilhem tudo aquilo. Passados outros tantos dias, vamos embora.
Quando me despedi da família e dos amigos, sabia que ia voltar passados sete meses. Havia um bilhete de regresso. Aqui… não sei se alguma vez os irei voltar a ver. Sei que os sonhos deles passam por um dia, visitar a Europa – mas como se diz a estes novos amigos que visitar a Europa não é assim tão fácil? Vivi na India com menos de nove euros por dia, incluindo transportes, alimentação, estadias e entradas para monumentos. Como lhe vou dizer que 9 euros quase não chegam para uma viagem Lisboa – Caldas da Rainha? Como lhes digo que têm de arranjar dinheiro para aviões, para o visto e para um seguro de saúde num país onde quem tem salário acima de 200€ por mês já faz parte da classe média? E que, para conseguirem o visto, ainda têm de ter mais de 5000€ na conta para provarem que conseguem sustentar-se por lá?
Meter-me num avião e ir à India ou ao Nepal é relativamente fácil. Fazer amigos por lá é das melhores experiências que se pode ter. Talvez até, consiga mesmo marcar positivamente a vida de alguém. Dizer adeus sabendo que, provavelmente, só se voltarão a ver no dia em que regressares a esses países é frustrante. Quando dou aquele abraço final e digo “até um dia, espero-te em Portugal” sinto-me um hipócrita. Tudo o que mais queria era recebê-los tão bem na minha casa como fui na deles. Dou aquele abraço sempre na esperança de que tudo dê certo e que, um dia, tudo o que era um sonho dificilmente concretizável, acabe por ser a mais feliz das conquistas. Mas aquele sentimento de impotência e saudade ficarão para sempre.
Até brave,
franco
Comentários